sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Indignação de classe

Eu devia saber que não se podem julgar as pessoas pelo aspecto. Durante anos fui lendo artigos de Maria de Fátima Bonifácio e espreitei-lhe a fotografia tipo-passe no cimo da coluna ou vi-a de relance num qualquer canal televisivo a emitir opinião no seu casaquinho de malha sem pretensão visível. Era apresentada como historiadora e respeitei-a abstractamente por ter uma profissão diferente dos políticos de carreira, embora a sua evidente inscrição na mais assanhada das direitas fizesse lembrar um daqueles espécimes.
O que não me tinha ocorrido, juro, era que Maria de Fátima fosse «rica». Não só rica por ter dinheiro, mas «rica» por herança genética. Digo genética porque, percebi hoje, mais importante do que o dinheiro (que ainda assim é importante) é o grupo social — ou classe, se quiserem (e ela quer) — onde se nasce.
O artigo de Bonifácio no Observador é duma eloquência autobiográfica inesperada (para mim). O tema é Mariana Mortágua (o tema preferido da direita nos dias que correm) e é desde logo enternecedora a forma como Maria de Fátima põe a rapariga no seu lugar, que não é definitivamente o mesmo onde Fátima se encontra: «Mariana não sabe, não tem mundo para saber o que são e como são os verdadeiros ricos.» Traduzindo: Mariana Mortágua, essa mulherzinha, não nasceu numa família de ricos, não pode, portanto, julgá-los e muito menos propor impostos sobre eles.
Mortágua, como se sabe, é o arauto do «ódio de classe». E reagir à ideia de ódio de classe com essa maravilha filosófica do «orgulho de classe», assumido belicamente por Bonifácio, é o argumento definitivo para arrumar a esquerda. O que pode ser mais racional do que ter orgulho no grupo social a que se pertence? Não é apenas na família, é no conjunto das pessoas que se nos assemelham em posses e origens. Sabem todos os doentes da bola e todos os patrioteiros que não há nada melhor e mais puro do que o nosso grémio, por idiota que ele seja.
Maria de Fátima Bonifácio, historiadora de formação e «rica» por herança e genes, aprendeu cedo «o valor supremo do trabalho e da honestidade». Julgo que ela não quer dizer que teve acesso precoce aos extractos bancários da família, mas também não sugere que a sua eventual fortuna pessoal se deve aos ovos que vendia em criança, como a filha de José Eduardo dos Santos. Terão sido a educação e a observação do intenso labor familiar que lhe forneceram essas noções sobre os benefícios do trabalho. O certo é que daí em diante aprendeu «a poupar o necessário para evitar depender de terceiros». (Devemos concluir que todos os que dependem de terceiros não sabem poupar?)
Não parece haver grande mérito em poupar quando se herda, pelo menos não mérito suficiente para moralizar arrogantemente sobre o trabalhador comum, como Maria de Fátima faz com regularidade, pelo que quando fala em saber poupar talvez se refira ao dinheiro que põe de parte do seu salário de historiadora. Mas nesse caso isso poderia significar que Maria de Fátima não soube poupar a herança, o que faria dela uma vulgar estroina, ou que aquela lhe foi confiscada no pós-25 de Abril — e isso explicaria o seu ódio às classes baixas. Sim, porque nisto de ódio de classe há uma reciprocidade, como resulta evidente da leitura da prosa bonifácia.
A verdade é que cada proletário deste mundo ambiciona ser um daqueles «burgueses» de que Maria de Fátima tanto se orgulha de ser. O que acontece é que a maioria deles não nasceu numa família rica, não teve um «Pai», com ou sem maiúscula, industrioso como o dela. E não tem culpa disso, uma culpa que deva expiar pagando proporcionalmente mais impostos do que os «ricos», ou que consiga expiar apenas trabalhando «mais e melhor», como Bonifácio de algum modo sugere.

Uma crise instalou-se no país há vários anos e só por profunda falácia (ou exacerbado e patético orgulho de classe) se pode dizer que a culpa foi dos pobres ou remediados. Na última legislatura aumentou-se «brutalmente» a carga de impostos, sobretudo dos assalariados. Não chegou para resolver o problema, pelos vistos. Será então assim tão escandaloso que, antes de fragilizar ainda mais os trabalhadores por conta de outrem ou de os condenar ao desemprego (e lá se vai a teoria do «trabalhar mais e melhor»), se procure que novos impostos recaiam sobre quem, ficando um pouco menos rico, não ficará certamente pobre? O que há nisto de imoral?

Nem todos acreditamos que «em Portugal há muitos pobres porque há poucos ricos», já não acreditamos na pirâmide de champanhe, por gira que seja a ilustração, e parece haver um bom número de estatísticas e estudos a dizer o mesmo, incluindo um apoiado pela pouco plebeia Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Embora aborde assuntos económicos, o artigo de Maria de Fátima Bonifácio não se dá muito ao trabalho de atacar Mortágua por propor um imposto que afastará investidores, como outros fazem, talvez com mais pudor em exibir o seu orgulho de classe. Não está no artigo encenado, como é mais habitual, um confronto entre a solução dos impostos e, por exemplo, a solução do emagrecimento do Estado. É mais franco o artigo de Maria de Fátima e por isso mais esclarecedor. A sua é simplesmente ou sobretudo uma reacção alérgica, uma repulsa snob, uma mais aristocrática do que burguesa indignação de classe.

P.S. E agora, como o amigo de Rui Bebiano, vou ali aprender russo para ver se leio Marx no original.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Asco

Há muito tempo que não visitava o Blasfémias. Há dias caí nisto:


Achei que, mesmo para alguém com o historial deste Vítor Cunha, era um pouco patético um tipo deixar-se chegar a este ponto de irritação, desespero ideológico e niilismo argumentativo.

Hoje saiu-me este outro post na rifa


digno de um verme que já não disfarça a sua condição. Fui espreitar o tom geral do blogue. Um pouco mais de verniz, mas não muito.

As cretinices do Blasfémias, mesmo nesta fase de puro fel, estribeiras perdidas e alma penada à vista, ficam com quem as escreve. Tenho é pena de amigos que ainda consideram inteligente ou decente contemporizar com a "direita" de Helena Matos, José Manuel Fernandes & abjecta Companhia. Muita pena, mesmo.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A Gradiva e o Saraiva

Segundo a TSF, Rodolfo Begonha, director-adjunto da Gradiva, afirma a propósito do livro do arquitecto Saraiva «que existem fronteiras à invasão de privacidade mas não cabe à Gradiva defini-las». «Não somos censura», terá dito. Ora, esta afirmação só faz sentido se a editora tiver um contrato com o autor que lhe assegure a publicação dos livros que ele se lembre de escrever. Caso não exista esse contrato, a publicação do livro é de facto também uma escolha da editora, não adianta tentar sacudir a água do capote.
A mera lógica do argumento «não somos censura» para explicar a impotência da editora perante o objecto saraivesco implicaria que a Gradiva teria também de não censurar, e consequentemente publicar, as centenas de livros que decerto autores mais ou menos dotados lhe fazem chegar todos os anos. Se os não publica é porque aplica aquilo a que se chama «critérios editoriais», sejam eles financeiros ou literários.
Não havendo contrato, e tendo em conta que não foram considerados quaisquer critérios editoriais no caso em apreço, restam duas hipóteses: a Gradiva ter José António Saraiva no alto gabarito de autor a quem não se recusa uma obra ou ter feito umas contas a quanto podia arrecadar com tão vil publicação. Das duas hipóteses, a última é apesar de tudo a menos danosa para a reputação da editora.

domingo, 18 de setembro de 2016

Desvio de direita

Se vivêssemos num regime comunista, eu, que até aplaudo o novo imposto da gerigonça, seria irremediavelmente acusado de “desvio de direita”, e não apenas na forma tentada. A somar ao vital impulso que me afasta das multidões e não raro atira comigo para remotas paragens do Portugal profundo — onde, no leito seco de ribeiros ignotos, armo a cadeira de praia verde-fluorescente comprada nos chineses (nisso sou ortodoxo) e abro um livro pouco do agrado das massas — tenho também a desfaçatez de, em alternância, me instalar em esplanadas de velhos hotéis aristocratas (onde não armo a cadeira verde, tanto porque não preciso como porque não tenho coragem) a bebericar copos de vinho 4 ou 5 euros acima das minhas possibilidades. Individualista e ocasional burguês, eis o libelo fácil que contra mim se poderia levantar.

E contudo não é um fetiche de proprietário rural pré-25 de Abril que me leva para o campo (e, com deprimente infrequência, para um qualquer monte alentejano) nem um voyeurismo de leitor da Caras ou Hola! que me senta em esplanadas cinco estrelas. É o silêncio. O relativo silêncio da Natureza ou dos sítios caros. A Natureza, ao contrário do homem, não precisa de banda sonora permanente, ou se precisa tem o bom gosto de preferir o gorjeio afinado e harmónico dos pássaros. Os sítios caros, se antigos, têm o volume baixo e aquela discrição tradicional do dinheiro velho (ou a discrição táctica do dinheiro com consciência pesada), em tudo contrária à algaraviada novo-rica e estroina da classe média.

Estou ideologicamente comprometido com a humanidade, não duvidem, mas não ao ponto de querer partilhar transmissões desportivas ou decibéis musicais. Em qualquer eleição votarei de acordo com o bem comum — mas na hora de escolher o bar serei elitista. Pela mesma razão que prefiro a desolada e exaurida Ribeira de Angueira a qualquer higienizada e fresca piscina municipal: na primeira não posso nadar, mas na segunda não posso ler. Em paz.

Não é só a História que me afasta do comunismo: é a mania que as comunidades, mesmo as não comunistas, têm de fazer de todo o espaço público uma permanente e ruidosa Festa do Avante.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

«Mil livros para aquecer os invernos em Pitões das Júnias»

Li este título do Público e achei pouco. Mil livros ardem rápido. Mesmo numa aldeia de 150 habitantes, dificilmente chegarão para um único Inverno.

Ah, esperem, o título tem um sentido figurado. Já percebi, trata-se de uma iniciativa para a promoção da leitura.

Há uns anos, eu próprio tive o gesto romântico de doar uma biblioteca de 500 livros a uma aldeia. A diferença é que naquela época o Público tinha um suplemento literário ao fim-de-semana e falava com frequência de livros na edição diária. Hoje condescende em ter uma ou outra página sobre livros num magro suplemento cultural dominado sobretudo pela música. (A música é, para as últimas gerações de portugueses, mais ou menos intelectualizadas, o que mais conta como cultura, e nem sequer toda a música.)

É bom que se disponibilizem livros. O que a biblioteca itinerante da Gulbenkian fez pelo desenvolvimento intelectual deste país é impagável. Mas ter livros à mão num ambiente social francamente hostil à leitura pode ser, e infelizmente é demasiadas vezes, pouco mais do que uma inutilidade. Sobretudo quando a hostilidade é velada ou camuflada, não desafia, nem chega a ser hostilidade, mas desprezo, silêncio na melhor das hipóteses, indiferença, geralmente mofa, escárnio, por vezes advertência sincera contra os malefícios da actividade anti-social ou anti-moderna que ler é.

O Público dá esta notícia pelo pitoresco, o quixotesco, não por um real interesse no efeito que mil livros à solta em Pitões das Júnias possam ter. O Público tem suficiente cinismo para saber que nove ou dez metros de estantes caídas do céu pouco valem contra um país cujos media e instituições há muito deixaram de se interessar verdadeiramente pela leitura. Não é impossível que, em Pitões das Júnias ou na Baixa da Banheira, surjam leitores empenhados só porque alguém lhes deixou livros por perto. Essa hipótese basta para que continuemos a simpatizar com iniciativas como a noticiada pelo Público. Mas não ignoraremos que essas pessoas se tornarão leitoras por uma qualquer tendência ou vocação pessoal — e apesar do país em que vivem.