Por mais de uma vez esteve para se desfazer da guitarra. Que interesse tinha mantê-la? Não era pessoa de acumular tralha, memorabilia. Desconfiava até que havia qualquer coisa de mórbido em conservar aquele instrumento de uma vida anterior, quase como guardar as relíquias de um morto. Censurava-se a inércia, a falta de coragem, perguntava-se se não devia temer a possibilidade de um objecto assim trazer má-sorte.
Depois os mercados entraram em pânico ou ficaram de mau humor, uma destas coisas, e K. deu consigo a pegar na guitarra. Inicialmente apenas a encostou ao peito, transmitindo os seus batimentos cardíacos à madeira. Chegava a casa, sentava-se e punha-a sobre as pernas, apoiando o tórax nela. Mais tarde, fez soar as primeiras notas. Quando deu por si, tinha deixado crescer as unhas da mão direita, voltaram os harpejos, os dedilhados, as melodias comoventes e lúgubres que saíam do nada.
K. nunca tinha tocado no metro. Agora que o fazia, perguntava-se se devia estar contente por ainda ter a guitarra ou se devia amaldiçoar-se por a ter conservado. Talvez a velha Ibañez se tivesse cansado do silêncio ou do uso indevido e tivesse exigido de volta a vida poética de antigamente. Talvez tivesse simplesmente atraído azar — mais do que atraía moedas para o chapéu.
A vida de K. (2)
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