sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Psyche e Eros

De: jacinto.na.lapela@gmail.com
Para: octavio.cesar@hotmail.com
Data: qua., 16 de nov. de 2022 23:07
Assunto: Psyche e Eros


Meu gentil amigo e confidente,

Entre as várias razões pelas que se inventaram e mandam erigir hotéis estão as dos indivíduos que lá entram para ser vistos no lobby ou no bar, as dos que lá fazem negócios, as dos que os usam para terem atenções de criadagem (gozando pelo preço da diária uma impressão fingida mas lisonjeira e reconfortante de baronia ou ducado), as dos que neles consumam encontros clandestinos, ao serviço de causas patrióticas, empresariais ou lúbricas, e até as dos que, em viagem, ali se dirigem para, coisa excêntrica, simplesmente dormir.

Eu, aos hotéis, escolho-os dando primazia àqueles plantados no meio de frondosos parques, com jardins como fossos de castelo ou muros como muralhas, hera a camuflar-lhes as fachadas e arvoredo a roçar-lhes ou encobrir-lhes as vidraças, não tanto porque precise de discrição, mas porque necessito de oxigénio, mais do que o homem comum. No que toca a respirar sou hiperbólico, exijo abastança, e pureza, sofisticação; definho se o ar é exíguo em fragrâncias botânicas e copioso em dióxido de carbono. Incapaz, por mais que tente, de fotossíntese, tenho de me limitar como os demais humanos à função respiratória, e, longe dos parques, no meio das ruas de hoje, onde se despejam gases de combustão como há séculos se despejavam penicos, mas já sem a delicadeza de um «água-vai», rapidamente fico como peixe em cesto de pescador, a abrir e fechar em vão a boca, olhos esbugalhados de pasmo ou desespero.

Acontece também que, sem que me possam ser atribuídas responsabilidades nisso, os hotéis nos parques, em regra históricos, são também aqueles que atraem a melhor clientela feminina. As senhoras elegantes são proverbialmente mais selectivas dos que os cavalheiros e se, na hora de decidir onde repousar, podem escolher entre o rumorejo sugestivo das árvores ou a noite insonorizada de um hotel de cadeia, tirado em série de um molde anódino, podes estar certo, meu caro amigo, de que verás as melhores delas inclinar-se para uma evocação de fidalguia.

Há uma semana, na Pousada de Viana do Castelo, quando passei a caminho da sala de jantar, estava sentada, por debaixo de um atroz retrato de Dona Carlota Joaquina de Bourbon — ali pendurado não sei se como elemento decorativo de uma festa de Halloween e esquecido por incúria —, uma mulher loira, de testa alta e clara, que me seduziu logo, talvez por lhe pressentir, apesar de tão indolentemente enterrada num divã, uma rara graça no andar, graça altiva e ligeira de Deusa e de ave.

Quem era?, ter-te-ia perguntado se as nossas agendas tivessem coincidido naquele magnífico monte de Santa Luzia. Suponho, continuaria — julgo que continuei, para mim mesmo, antecipando já o prazer que teria em contar-te o que vi e vivi —, que nos chegou do fundo da província, de algum velho solar minhoto, com erva nas juntas da alvenaria, porque não me lembro de ter encontrado, em Lisboa ou no Porto, ou ter visto em jornal, revista ou programa de televisão, aqueles cabelos fabulosamente loiros, quase brancos, como as planícies de Castro Verde ao sol a pino de Julho — nem aquele ombro descaído como o da Psyche de John William Waterhouse a abrir a caixa doirada de Perséfone, o vestido leve descaído e cingido ao peito, modelando-o e desvelando-o na mesma exacta proporção da pintura, de um modo que esperamos ver nas passerelles de Cannes mas não em Viana.

Encostei-me à ombreira o observar o quadro — não o da Megera de Queluz, bem entendido — como se estivesse num museu com bilhete pago, gozando o privilégio do dinheiro investido, não me ocorrendo sequer a indelicadeza do que fazia. Só um minuto ou dois mais tarde, saindo, não totalmente, do torpor, me dei conta de que ela falava com o gerente, que eu conhecia já de anteriores estadias. Por que é que não me adiantei e não pedi uma apresentação?, estarás tu a perguntar-te, suspeitando, acertadamente, que hesitava. Não sei. Talvez o requinte em retardar, que fazia com que La Fontaine, dirigindo-se mesmo para a felicidade, tomasse sempre o caminho mais longo. O facto é que, depois da contemplação junto à ombreira, me fui a cear ao pé da minha diáfana melancolia, levantando o copo com o braço mole de uma figura de Malhoa, para escândalo do escanção que me servia.

Aquilo não foi uma renúncia, mas um adiamento, caso contrário não estaria a escrever-te; sabes que não sou dos que se andam por aí a blasonar, mas também não me deito à escrita de cartas como quem se acama para chorar no divã do psicoterapeuta. Se escrevo, há factos. E são estes:

Depois de uma noite de observação, em que julguei adivinhar num ou noutro momento uma retribuição do olhar, e não apenas a retribuição de sobrolho franzido de quem se sente mal no papel de palácio observado por boi, ou a retribuição acompanhada de gesto reflexo de quem, ainda não percebendo se é traça ou varejeira, sabe já que é para enxotar, depois dessa noite em que julguei ver uns olhos finos e lânguidos, sai para reatestar os pulmões antes do pequeno-almoço e já a minha Psyche levitava pelo terraço em direcção ao Ocidente, como se preparasse, sem necessitar do esforço e da bagagem dos parapentistas, um voo planante sobre a Praia Norte.

Percebi mais tarde, contudo, que a aparente leveza da moça não lhe vinha de ser o ente superior e gracioso que deveras era, mas de, sentindo-se moribunda, andar a ensaiar para agir como a alma que abandona o corpo, leve como pena soprada na brisa. Primeiro, pensei-a doente do organismo e condoí-me como se, ali nas alturas do monte, eu fosse uma visita num sanatório de tuberculosos. Mas nas faces e no colo da amada de Eros, que ela mantinha nu não apenas por estarmos em pleno Verão de S. Martinho, mas por hábitos enraizados de coqueteria, não vi maleitas das que corroem os órgãos; só nas pestanas, quando as baixava, parecia pender um romance triste.

Meti conversa, apontando vagamente a localização do célebre Prédio Coutinho, que tinha sido demolido por mais de um milhão de euros, um milhão achatado em entulho, dizendo-lhe que também um quiosque por mim mandado erguer, na minha quintarola, para me servir de pensadouro e retiro nas horas de sesta, tinha abatido com as chuvas de Outubro. Problema de fundações, como tudo neste país, acrescentei, querendo parecer irónico, mas usando um lugar-comum. Tudo tende à ruína num país de ruínas. Depois, apontando de novo a cidade, o que se via dela, disse-lhe que a vista não tinha melhorado assim tão francamente com a ausência daquele monólito, talvez fosse preciso continuar o trabalho pelos arrabaldes em geral.

Ela ouviu sem comentar, mas também não se lançou da amurada abaixo, o que considerei uma pequena vitória. Pareceu pousar na tijoleira do terraço, como Nossa Senhora descendo sobre a azinheira, e olhou-me pela primeira vez. Contou-me então (e juro-te que tudo isto é verdade!), como se tivesse ensaiado toda a noite para aquele momento, que reparara nos meus olhares ao jantar, na forma como eu mastigava vigorosamente os rojões sem tirar os olhos dos seus ombros nus, que, sempre que levava o copo aos lábios, fixava os dela, como se fosse deles que bebia e não do balão onde me serviam o Bordeaux. Contou-me que olhou para mim e viu a providencial brutalidade dos homens e que isso lhe deu a primeira nota de alegria dos últimos dias. Confessava-mo porque não me conhecia e esperava não voltar a ver-me, mas trazia atravessada na garganta uma relação falhada e lançar-se-ia do promontório abaixo se não pudesse dizer duas ou três coisas que não ficavam bem a uma mulher.

Aquilo da «providencial brutalidade dos homens» não era para levar a mal, disse ela, era uma coisa que tinha lido em A Correspondência de Fradique Mendes, numa passagem onde Eça tinha escrito que

Só a porção de Matéria que há no homem faz com que as mulheres se resignem à incorrigível porção de Ideal, que nele há também — para eterna perturbação do Mundo. O que mais prejudicou Petrarca aos olhos de Laura — foram os Sonetos.

É que a minha Psyche do Minho estava a sair de uma relação com um poeta e fidalgo galego que a deixara muito insatisfeita. Ele era o Romeu de Fradique Mendes que, «já com um pé na escada de seda, se demorava, exalando o seu êxtase em invocações à Noite e à Lua», e ela era a Julieta que batia os dedos impacientes no rebordo do balcão e pensava: «Ai, que palrador que és, filho dos Montecchio!»

Acabara por o devolver à precedência e viera refugiar-se uns dias na Pousada, registando-se com um nome falso.

Creio que já te disse, meu caro Octávio, que os olhos dela eram finos e lânguidos — e agora estavam apontados a mim, interrogativos, insistentes. Convidei-a a visitar a Citânia de Santa Luzia a norte da Pousada ou talvez o bosque lá para os lados do court de ténis, onde havia decerto recantos encantadores — e ela aceitou.

Suponho que dirás, depois disto, que também eu uso hotéis para encontros clandestinos — e não ao serviço de causas patrióticas ou empresariais. Mas hás-de convir que não há aqui consequências que derivem de causas, apenas o acaso de estar uma pessoa em determinado sítio a determinada hora quando se viram páginas do calendário.

Deixo-te imaginar o nosso passeio e mando-te um apertado abraço com saudades.

O teu
Jacinto


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Nota: Este pastiche inspira-se vagamente em duas cartas «a Madame de Jouarre» de A Correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queirós, das quais retira algumas frases.

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