segunda-feira, 25 de outubro de 2021

compreender o velho cemitério incómodo e sinistro da família

«Nos meus primeiros anos de adulto, frequentava durante os meses quentes, com a regularidade e a entrega de um rito pagão, a curva onde um rio se alargava e permitia banhos. Nesse tempo, costumava pensar que gostaria que as minhas cinzas fossem espalhadas ali quando morresse, antes da pequena queda de água, onde havia uma represa que se podia atravessar como poldras.

«Falava muito na morte mas não creio que pensasse mesmo nela, não com o desassossego de quem realmente a considera, o susto de quem a teme, o medo ou a terrível frustração de quem a vê próxima. Muito menos com o alívio de quem vislumbra nela uma solução para as inquietações. Não as tinha naquela altura capazes de invocarem tais pensamentos. Era uma forma de sublinhar o meu apreço por aquele local, de tentar prolongar no tempo ou projectar no futuro o prazer que me dava estar ali.

«Anos mais tarde, quando voltei a visitar aquele território, achei o sítio acanhado, sem horizontes, voltado para si mesmo, demasiado próximo de uma estrada muito circulada. Mesmo se descia ao rio não encontrava o éden anterior, mas a margem desolada e sem atractivos de um pequeno rio cujo caudal diminuía com o decorrer do tempo. O meu olhar e o meu pensamento já não se conseguiam circunscrever, com satisfação, ao vale estreito onde corria o rio e que antes me bastava como se tivesse a vastidão onírica de um vale jurássico: subiam as encostas e erguiam-se nos céus como se transportados por um drone ou acompanhando uma operação de zoom out no Google Earth. E notavam que as dimensões do espaço e as distâncias relativas eram tão exíguas que me faziam sentir limitado, aprisionado, restrito como um cão ao perímetro da sua corrente.

«Na época em que frequentava o rio costumava pensar assim da aldeia onde morara antes, se me vinham recordações dela. Temia ter de regressar um dia para viver de novo naquele mundo ainda mais pequeno, primitivo, atávico. Lembrava-me dos dias em que por alguma razão faltava às aulas e ficava em casa para testemunhar involuntariamente o quotidiano laboral da aldeia, e a memória desses dias era constrangedora, continha a ameaça de uma punição, de um exílio para os limites estreitos de uma vida de campo de trabalhos. Estava habituado a pensar nos dias pós escola como de festa, de lazer e sonho, de expectativas e esperanças, de promessas excursionistas e exploratórias. A escola continha em si janelas para um mundo vasto mas os tempos livres e festivos, sem obrigações nem trabalhos, propícios ao exercício de sonhar e experimentar o futuro, imaginar novos horizontes e ensaiar quebrá-los, eram os terraços onde as vistas realmente se alargavam.

«Ficar em casa em período laboral, se não estivesse doente, significava, pelo contrário, integrar-me sem apelo nem entusiasmo nos dias e nos trabalhos da comunidade. Não eram os trabalhos e vivências de uma aldeia em si mesmos que invocavam a sensação de castigo, de derrota, de prisão, mas a sua obrigatoriedade, a obrigatoriedade dos seus horários, a sua circularidade, o calendário sem avanços efectivos, a sua repetição, o eterno retorno e a sua aparente inutilidade, como os trabalhos de Sísifo; era a sua incapacidade de nos incluir no processo de desvendar e desfrutar o mundo. Durante anos, a memória dos cheiros, dos sons, dos próprios céus limitados do Inverno na aldeia, das intermináveis colunas de fumo de queimadas e lareiras com os seus potes invariáveis, das conversas rotineiras, dos hábitos cíclicos e transmissíveis interminavelmente, essas memórias eram suficientes para sustentar em mim o impulso centrífugo e uma ânsia desesperante de modernidade e futuro.

«Pensar na aldeia fazia-me também pensar no cemitério, onde se depositavam todos os corpos, todas as almas de quem tinha ali habitado, famílias inteiras sobrepostas como camadas geológicas desde tempos imemoriais, estratos compactados onde se lia a história de uma tribo, de uma civilização, em que na fina membrana que representava uma era antiga, depositada no fundo da sepultura, se liam os mesmos episódios que registava um corpo acabado de deitar.

«O cemitério ficava numa encosta e era orientado a Norte, como se virado para o magno ponto cardeal, o que ordenava o mundo e lhe dava um sentido cartográfico, o mantinha de pé, sem más inclinações geográficas ou morais. Envolto por bosques de pinheiros, raramente recebia sol, com aquela sua localização imprudente ou punitiva, que denunciava talvez um imaginário de crenças tenebrosas por oposição a outras luminosas e benévolas. Eu, que estava vivo e amava o Sol, sentia-me apátrida naquele cemitério quando tinha de o visitar. Não me incorporava naquela religiosidade, imaginava-me antes membro de uma seita pagã das que adoravam o Sol inclemente do deserto ou lhe erguiam santuários banhados pelos Seus raios a todas as horas do dia.

«Num dos meus momentos de evocação da terra-mãe decidi fazer com urgência, antes de ser apanhado desprevenido e encerrado numa eternidade exígua, claustrofóbica e sem exposição solar, um testamento peremptório em que condenava num parágrafo apocalíptico os que me amassem, se me amassem, a cremar o meu corpo morto e a espalhar as cinzas no mais vasto oceano, lançando-as não nas águas paradas de uma baía mas para as correntes marítimas a partir de um cabo, de um desses que em algum momento da História se chamou finis terrae.

«E contudo, decorridas mais duas décadas, é no território da infância e da adolescência, não ainda e talvez nunca no dos vinte anos, que deposito o que me resta de energia de viver. Não, é certo, no território físico, procurando-o com a esperança de que permaneça intocado, mas no da memória, ocupando os melhores momentos do dia a evocar um tempo que antes sentia como lastro ou fantasma com a missão de me assombrar o futuro. Temo — ou anseio, já não sei bem — que hei-de ocupar uma parte do tempo que me resta a compreender o velho cemitério incómodo e sinistro da família e, finalmente, a evocá-lo como a ilha última do meu éden pessoal.»

[Excerto de Salvar o Mundo.]

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