Tinha-os avistado na rua; deve ter havido um encontro, eram algumas dezenas e eram inconfundíveis. Com as suas pastas, os seus trajes formais, gravata, gabardina, vestidos sóbrios e, nalguns casos, chapéus, pareciam-se com vendedores de tupperwares numa convenção dos anos 50 americanos, o mesmo sorriso, o mesmo sentido de grupo e de missão. No entanto, como estamos em Portugal, anos 10 do século XXI, e como já não é Natal, aqueles atavios e aquele ar beatífico só podiam significar gente recrutada pelo divino.
Subi as escadas com certa ligeireza, duas a duas, como se me empurrassem para cima, com dedos de veludo, os anjos do Senhor. O meu espírito estava enlevado, eu sorria, a vaga de frio tinha passado e o fim de tarde parecia de Primavera. Estava com o astral que Paulo ganhou quando, na estrada de Damasco, viu, não as tropas de Bashar al-Assad, mas a luz que o cegou. Cheguei à entrada de casa e notei com um sorriso reforçado que o meu era o único apartamento sem literatura evangélica.
Além da virtude, há que louvar aos missionários a perspicácia. Não por terem poupado um folheto ao perceberem ser esta a casa de um iconoclasta — mas por se terem dado conta que o inquilino saíra para fazer jogging. É que um homem ganha o seu estado de graça e a sua leveza espiritual (pelo menos esta) quando corre doze quilómetros — dispensa nessa altura outras bênçãos.
Sem comentários:
Enviar um comentário