sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

As leituras das vizinhas

Há perto de trinta anos descobri, envergonhado, que as minhas vizinhas liam Vergílio Ferreira. Envergonhado por mim, que ignorava o que escrevia Vergílio Ferreira e pensava que no bairro as senhoras só liam romances cor-de-rosa. Havia um livro esquecido numa mesinha, julgo que o Em Nome da Terra, ou talvez o Para Sempre, e enquanto me pus a folheá-lo, intrigado com a presença daquele objecto naquela casa, entrei num estado de espanto e êxtase que só terminou meses mais tarde, depois de ter aviado mais ou menos de enfiada aquele par e Até ao Fim, Uma Esplanada Sobre o Mar, Na Tua Face, Cartas a Sandra, uns contos do autor e, já esmorecendo, Aparição.

Hoje descubro, desolado, que as minhas vizinhas lêem muito José Rodrigues dos Santos — e romances cor-de-rosa. Temo que já não leiam nada que se pareça com Vergílio Ferreira.

Não é o envelhecimento delas, suspeito, mas uma consequência e metáfora dos tempos.



quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

O Pai Natal

Está habitualmente colocado com as suas longas barbas e o seu odor a falta de champô numa zona de cafés da cidade, às vezes acocorado no chão, outras sentado em degraus ou numa cadeira das esplanadas, sempre balouçando o tronco para trás e para diante como animal em jaula (aprisionado no vício, dir-se-á à volta) ou com uma perna tremendo com tique de espera prolongada em consultório médico. Ontem, ao contrário do habitual, vestia um blusão de cor viva, vermelho, e visto à distância semelhava um Pai Natal, parecia que escolhera o outfit para se enquadrar na época, se inserir socialmente. Estava a chegar ao bairro da sua rotina, como quem vai pegar a trabalhar, e iniciou a travessia da última rua adequadamente na passadeira, mas logo de seguida, como se tivesse repensado o seu lugar na sociedade, cofiando as barbas que de resto são escuras, logo inflectiu sem pausas e continuou para o seu destino numa diagonal, indiferente ao trânsito, aos carros em slalon à sua volta e provavelmente à época.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Breve história de uma carreira pop

Começou por cantar na missa levado pela mãe, uma senhora mística e sofridamente adúltera que lhe transmitiu o gosto pelo êxtase à la Teresa D’Ávila. Era famosa a sua (dele, todo rosado) boquinha de anjo. Na adolescência, nauseado por tanto apregoar sem resultados a virtude e a humildade, entrou à noite e às escondidas, de cerveja choca na mão, para uma banda de rock’n’roll. Quando começou a dominar a técnica, que, além da guitarra, implicava o lábio superior, a sobrancelha direita e um certo jogo de joelhos, chegou o punk e viu-se então obrigado a fingir que não sabia mais do que dois acordes e que desafinava por origem social. Para facilitar, fez-se baterista, posição em que lhe custava menos parecer genuinamente incapaz e onde o seu entusiasmo musical, a martelar com energia tambores e pratos, poderia facilmente confundir-se com um tique resultante de labor proletário, as contracções espasmódicas de um operário chaplinesco já fora do alcance da medicina no trabalho. Mas não chegou a aquecer o tamborete, porque logo logo se impôs o new romantic, um punk limpo e amaricado cujas cabeleiras barrocas e caras empoadas lhe lembravam, dos tempos de acólito, as gravuras que o obrigavam a ver sempre que lhe ensinavam um novo requiem ou quaisquer outras obras litúrgicas. Passou aí a ser o frontman porque, apesar de tudo, o encavalitar dos dentes após a velha e precipitada recusa revolucionária do aparelho e os inesperados e incipientes pêlos de uma barba dylanesca, bobdylanesca, não lhe perturbaram a natureza essencialmente angélica e aristocrata, o perfil quase helénico e petrificado de figura de proa de um veleiro. Ficou então famoso o seu apetite por microfones, que mordia criando uma imagem de marca (e deixando um registo odontológico) muito dirigida a teenagers leitoras da Bravo mas pouco apreciada pelos promotores de concertos e nada pelos vocalistas que, enojados, lhe sucediam no alinhamento dos festivais. Da new age à soul foi um passo natural, porque, naqueles anos, a quem não tinha atitude ou carisma suficiente não restava mais do que permanecer verdadeira e frustradamente cantor, tendo talento. Ninguém ignorava que ele teria preferido optar por uma carreira mais sexual e menos musical, mas não havia nada a fazer, só a voz lhe valia. Despediu então toda a banda, uma malta que entretanto se tinha tornado assaz competente, para contratar afro-descendentes. A soul pedia, achava ele, um balanço específico e mais fôlego, coros poderosos, predicados que o seu velho combo de não cantores movido a Super Bock e Macieira não tinha como providenciar. Foi-se ao bairro dos retornados e veio de lá com uma secção rítmica capaz e um coro de moças roliças que teria maravilhado a sua mãe, não fora o tom da pele delas não combinar com os reposteiros da família. Da velha banda que o acompanhara pela história da música sobrou, por polivalência e consequente direito próprio, o teclista, um Ray Manzarek que não raras vezes saía da madrugada do backstage, limpando os óculos de tartaruga, para a nave da sé, onde tinha a seu cargo o matutino órgão de tubos. E então a soul deu-lhe cabo da carreira. Quando se imaginava um George Michael nacional, como ele reinventado e introduzido numa respeitabilidade vocal e interpretativa a que a imprensa se haveria de render (embora no seu íntimo continuasse a lamentar-se por a voz ser o seu único predicado), começaram a acometê-lo pesadelos, terríveis pesadelos. Via-se no palco como no convés de uma nau quinhentista, uma nau negreira. O pálido Manzarek era o seu imediato e a banda mais o coro, todos negros ou mestiços, eram os escravos. Noite após noite durante a sua última digressão, baralhando épocas e tragédias históricas, não conseguia deixar de ver o baterista como o sonderkommando que marcava o ritmo nas galés e as coristas, nas suas coreografias de braços ondulantes, como os condenados remadores. Esgotado e dominado por um remorso de classe que uma carreira musical plebeia não conseguira desvanecer — ainda que aquela mesma carreira tivesse feito morrer de desgosto a mãe, já de si deprimida por haver na verdade pouco proveito prático no adultério sénior — resolveu à boa maneira maoista fazer um mea culpa público e abriu na baixa um centro de terapia com sinos tibetanos.

sábado, 30 de novembro de 2019

As trapalhadas de Joacine

As trapalhadas de Joacine Katar Moreira trouxeram alívio e regozijo à pátria. De repente, tudo o que se disse dela desde cedo foi premonição e sagacidade — mesmo quando foi apenas preconceito, estupidez ou racismo.

Em Tudo Havia Beleza

Leio Em Tudo Havia Beleza, de Manuel Vilas, com o mesmo fascínio com que li os livros de Sebald, com a mesma impressão de que humanidade atinge ali um cúmulo — e demorando a leitura com o mesmo pânico por saber que os livros (e os autores) são finitos.

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

A melancolia de um misantropo

Paul Mason, no seu livro optimista sobre a humanidade e a inteligência artificial, diz, grosseiramente resumindo, que a superação deste capitalismo em furibunda crise de existência passa pela cooperação. Eu se fosse um deus seria um em que o Nick Cave de “Into My Arms” poderia acreditar. A minha vontade divina é ter sempre, em todas as ocasiões e circunstâncias, a coragem de ficar a um canto a ler e a espreitar a humanidade sem nunca intervir. A crença que consubstancio, menos ambiciosa ou mais utópica, é que já estaria bem se as pessoas não se atropelassem umas às outras.

Mas talvez haja também nisto uma forma de cooperação. Um misantropo é ainda um contribuinte para o bem comum, porque, tirando os casos extremos de eremitas, faquires e artistas da fome, come e bebe com apetite e paga as suas despesas e impostos com menos desagrado do que a maioria dos industriais e empreendedores a quem o capitalismo reza pela salvação. Uma sociedade de misantropos assim seria talvez pouco animada pelos padrões actuais de irrequietude e chinfrineira, de interacção símia, mas estaria, por natureza, muito mais preparada para assinar um pacto de não-agressão. Estaria, sem cinismo, muito mais preparada para retomar um ideal de União Europeia, a melhor das Uniões Europeias, uma em que cobriria o continente uma espécie de melancolia escandinava, com tudo o que ela traz de produtivo, bem-estar social e favorecimento da leitura.

Mas para que a melancolia de um misantropo seja para ele fonte de felicidade suponho que faça falta uma humanidade em tonta correria, a voltear no seu habitat urbano com afã de traça em candeeiro. O misantropo é feliz por contraste. Desdenha a humanidade mas precisa dela para se recordar de como os seus dias poderiam ser piores se tivessem um propósito social.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Mark Kozelek, Knausgård e a arte aos cinquenta*

De visita rotineira e esperançada a um blogue aparentemente decesso, parei mais do que o habitual na canção ‘This My Dinner’, que ali encima como epitáfio a coluna desactualizada de posts. É sempre um gosto ouvir aquele tema dos Sun Kil Moon, de Mark Kozelek, mas desta vez atentei na letra e quis acompanhar a lê-la uma segunda audição da música. Fez-me pensar num Karl Ove Knausgård que, em vez de romancista, fosse cantor e escrevesse letras para canções. E não por a letra de ‘This My Dinner’ ser uma espécie de hino à Noruega e aos noruegueses. Kozelek (fui ler mais letras e uns artigos sobre o homem) escreve as letras dos seus últimos álbuns no registo que se chama em amaricano stream of consciousness — o mesmo que James Joyce usou em Ulisses para pôr a sua Molly Bloom a discorrer na cama — e portanto são de esperar minudências, cenas do quotidiano, disparates, embirrações, obsessões, ansiedades, contradições, uma ou outra lamúria e alguns insultos e palavrões. Há ali (mas não só) o mesmo prazer do detalhe insignificante, do episódio sem grandeza e do relato autobiográfico cru.

Como Knausgård, Kozelek é inconveniente, não sei se também para a família, mas certamente para jornalistas. Uma delas escreveu um artigo no The Guardian contando como foi chamada de bitch ao vivo num concerto onde Kozelek relatou com duvidosa seriedade uma troca de e-mails entre eles. (Depois disse que estava a brincar. E depois reincidiu). De resto, o estilo spoken word e improvisado de Kozelek serve ao vivo por vezes mais para gozar e insultar o mundo à sua volta (outros músicos, jornalistas, público, fãs) do que para trips poéticas ou místicas a la Morrison Hotel, ainda que soe de forma semelhante.

E é curioso como a letra pode mudar todo o estado de espírito que uma canção nos sugere. Aquela voz angustiada e requebrada, por vezes melosa e outras tantas empolgada como um comandante de pelotão pessimista, parece falar-nos de dramas amorosos, crises existenciais ou combates fatais a travar, e na verdade pode estar apenas a contar-nos como lavou as suas meias num hotel de Madrid entre paragens numa digressão. É o mesmo desconcerto que Neil Hannon (o senhor Divine Comedy) despeja sobre nós se estivermos distraídos das suas letras irónicas e humorísticas e nos focarmos apenas no barítono sofrido que ele deixa escorrer para o microfone. Ninguém atento dançava slows nos anos oitenta ao som de músicas dos Divine Comedy**. Hoje ninguém dança slows, mas ainda não se inventou a imunidade ao mal de amor, pelo que convém vigiar as expressões e as poses quando se ouve publicamente Sun Kil Moon.

Não quero com isto desdenhar o que pode haver de literatura e poesia nas letras de Mark Kozelek (seria como ignorar a Beat Generation). Pelo contrário: eu apreciei muito, honestamente, como literatura, o políptico A Minha Luta, de Knausgård , e estou aliás chateado com a demora na tradução do último volume. (Bem sei que a geração anterior à minha, que não viveu os anos oitenta, prefere o À La Recherche, mas isso é por uma questão de proximidade vivencial.)
Aos cinquenta sabemos apreciar como arte sincera a resposta que Mark deu a uma nossa compatriota no final de um concerto em Espinho (relatada na letra de ‘Soap for Joyful Hands’):
«Mark, além da música, quais são as tuas outras paixões?»
Eu disse, «Eu tenho cinquenta anos, querida, acho muito relaxante estender-me no sofá
E também gosto de ler livros com os meus óculos de leitura novos
E gosto de ter cinquenta e não sofrer de cancro do pâncreas
E gostei de acordar depois de ter sido anestesiado para uma colonoscopia e descobrir que não tinha cancro do cólon
Queres saber quais são as minhas paixões além de viver o meu sonho de ser músico?
Estas são as respostas»

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* Um título tonto para um post tonto
** Isto é mentira, como sabem todos os então desesperados.